A nomeação de um argentino para a chefia do Vaticano representa um importante aceno da Santa Sé à América Latina, mas os gestos do papa Francisco terão mais poder de influência do que sua origem na relação entre a Igreja Católica e os latino-americanos, segundo padres e teólogos ouvidos pela BBC Brasil.
Ainda que a Igreja Católica argentina seja considerada politicamente mais conservadora do que a maioria das igrejas nos países vizinhos, a vida simples levada pelo cardeal Jorge Mario Bergoglio, suas ações em prol dos mais pobres e a humildade com que se apresentou como papa foram elogiados por padres e teólogos da região.
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Professora de teologia da PUC-Rio, Maria Clara Bingemer avalia que a escolha de um latino-americano “pode dar um gás para o Catolicismo na região”, mas aponta diferenças importantes entre a igreja na Argentina e em países vizinhos como Chile e Brasil.
“A igreja argentina sempre foi mais conservadora que a dos vizinhos. Hoje a relação entre elas é mais próxima, mas não significa que sejam igrejas irmãs.”
Regime militar
As diferenças, segundo os entrevistados, alcançaram seu ápice quando boa parte dos países latino-americanos era controlado por ditaduras militares.
Ativistas acusam a Igreja Católica argentina de ter silenciado diante de violações de direitos humanos pelo regime militar (1976-1983). Há ainda relatos de que alguns padres católicos colaboraram com o governo e até presenciaram cenas de tortura de dissidentes.
O papel do próprio Bergoglio durante o período é objeto de controvérsia. Em fevereiro, a Justiça argentina afirmou que a cúpula da Igreja Católica, que Bergoglio integrava, “fechou os olhos” para as mortes de religiosos progressistas. Em 2005, ativistas processaram o cardeal por supostamente ter sido cúmplice do sequestro de dois padres jesuítas. Já Bergoglio diz ter agido para libertar os religiosos.
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Maria das Dores Campos Machado, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), diz que a proximidade entre a igreja e os militares argentinos era ainda alimentada pelos interesses econômicos dos religiosos. Por meio de escolas católicas, o grupo tem grande participação no setor educacional do país.
Após o fim da ditadura, diz ela, o conservadorismo político da igreja cedeu, mas o conservadorismo moral se manteve. Machado cita embates entre Bergoglio – que acabaria por se tornar o principal expoente da igreja no país – e o governo argentino sobre casamento gay, aborto e a adoção de crianças por casais homossexuais.
Em 2010, quando Bergoglio posicionou-se contra esses temas, a presidente Cristina Kirchner disse que o religioso usava tom comum “às épocas medievais e à Inquisição”.
“O cardeal Ratzinger perseguiu teólogos da libertação, João Paulo 2º também. Duvido que o novo papa possa fazer isso.“
orge Claudio Ribeiro, professor do Departamento de Ciências da Religião da PUC-SP
Já a igreja brasileira, segundo Machado, ainda que moralmente conservadora, assumiu posição política crítica à ditadura militar. Ao contrário dos colegas argentinos, diz ela, bispos e padres brasileiros se afastaram dos militares e protegerem dissidentes. Os religiosos locais tiveram ainda, segundo a professora, uma posição “mais sensível aos movimentos democratizantes” do que os vizinhos argentinos.
Teologia da Libertação
O maior conservadorismo político da igreja argentina em relação às igrejas das nações vizinhas é tido como uma explicação para a pouca influência, no país, da Teologia da Libertação. O movimento, que tem importantes expoentes em vários outros países latino-americanos, principalmente no Brasil, interpreta a fé cristã à luz de problemas sociais como a pobreza e a desigualdade.
Nos anos 1970 e 1980, o movimento teve grande influência na disseminação, pela América Latina, das Comunidades Eclesiais de Base, que influenciaram o surgimento de movimentos sociais e partidos políticos, entre os quais o PT.
Desde o papado de João Paulo 2º, porém, o movimento foi marginalizado pela cúpula da igreja e, na América Latina, tem perdido espaço para a Renovação Carismática.
Embora alguns teólogos especulem que Bergoglio tende a manter a Teologia da Libertação afastada do seio da igreja, outros consideram que sua postura como pastor e a escolha do nome Francisco indiretamente respalda vários pilares do movimento.
“Ao promover a pobreza, São Francisco se identificou com os pobres, o que é muito próprio da teologia latino-americana”, diz Jorge Claudio Ribeiro, professor do Departamento de Ciências da Religião da PUC-SP.
Para Ribeiro, o papa fará com que a igreja entenda melhor a teologia produzida na região. “O cardeal Ratzinger perseguiu teólogos da libertação, João Paulo 2º também. Duvido que o novo papa possa fazer isso.”
“se o novo papa não será um defensor da Teologia da Libertação, porque vem de outro contexto, ao menos fez a opção pelos pobres em concreto, ao andar de metrô, cozinhar sua própria comida.“
Paulo Suess, padre
Ribeiro defende ainda Bergoglio das críticas à sua atuação durante a ditadura argentina. Segundo ele, o cardeal enfrentou os militares e promoveu a primeira ruptura da Igreja com o governo.
Primeiros gestos
Padres brasileiros ligados a movimentos sociais consideraram promissores os primeiros gestos do novo papa.
“O papa se apresentou de forma despojada, com muita humildade, de um jeito mais fraterno do que marcado por discurso de poder”, diz o padre Flavio Lazarrin, ligado à Comissão Pastoral da Terra, órgão que atua em prol de camponeses. “Parece um homem de fé e espiritualidade.”
Ainda assim, Lazzarin diz que a escolha de um papa latino-americano – independentemente de suas posições políticas ou morais – não resultará em mudanças nas relações entre os padres do continente e suas comunidades.
“Nós, no Brasil, temos ampla liberdade, somos escutados e apoiados pela maioria dos bispos. E, pessoalmente, acho que as coisas importantes, que determinam o caminho da história da humanidade, vêm de baixo para cima, e não dos locais do poder.”
Para o padre Paulo Suess, ligado ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi), “se o novo papa não será um defensor da Teologia da Libertação, porque vem de outro contexto, ao menos fez a opção pelos pobres em concreto, ao andar de metrô, cozinhar sua própria comida”.
Suess diz que a postura de Francisco pode influenciar padres que atuam no interior do continente.
“Hoje temos padres de Fórmula 1, que celebram missa com carrão e voltam logo para casa. Quem sabe o novo papa vai animá-los a deixar de fazer pit stop nas bases para ficar uma semana no interior, na aldeia indígena onde pregam.”
Para ele, as ações do papa terão muito mais poder de influenciar a igreja Católica – na América Latina e no resto do globo – do que a origem do pontífice. “Mudanças vão depender da sua cabeça e capacidade para se abrir a ventos novos, e não da nacionalidade.”